domingo, 17 de junho de 2007

Jerusalém na Lusitânia

Da série de "livros negros" de Gonçalo M. Tavares este Jerusalém inquieta-nos por a estranheza destas histórias nos parecer tão familiar na vida quotidina.
Procurar um "ciclo do mal" na vida da Humanidade, como quem afirma que a História se repete, tentando reduzir o ser Humano a um objecto de análise estatística, o que permitiria prever os "maus-ciclos" e prevenir as suas consequências, apresenta-se tão absurdo como ameaçador.
Absurdo porque, apesar dos horrores e destruição que tem provocado, a Humanidade tem maior riqueza do que aquela que se possa reduzir a fórmulas matemáticas, por mais complexas que sejam, onde nem tudo é previsível ou racional. Felizmente.
Ameaçador porque se GMT descobriu que Theodor Busbeck o queria fazer então alguém pensará assim e poderá arrastar crentes consigo.
Mas o autor vai tentar mostrar-nos o contrário através dos restantes personagens, fazendo-nos crer que a riqueza da vida está na sua própria complexidade e na tentativa de a compreender, o que nos pode levar à loucura.
Aliás este é um livro que, numa primeira leitura, parece tratar da loucura, mas que no fim, a meu ver, trata do medo.
O medo nas suas diversas formas, enquanto inibidor do melhor que a Humanidade tem e catalizador do pior de que somos capazes.
Depois deste livro, tenho dúvidas se a loucura não é apenas fruto do medo.
Sem que saiba bem porquê, não pude deixar de associar o tema deste livro ao actual clima do país, onde a loucura e o medo se parecem ter instalado em todos os níveis da sociedade: governantes que debitam discursos insanos sobre desertos, para tentar justificar (mal) decisões, funcionários superiores que apoiam (se é que não fomentam) a denúncia (o que indirectamente é um convite ao espiar do "outro") e consomem dinheiros públicos com processos, que nenhum valor trazem, porque alguém sob as suas ordens pertence à "cadeia nacional de divulgação das anedotas governamentais", juízes que condenam pais adoptivos, que o são por omissão e fuga do pai biológico, a anos de prisão por amarem uma criança, e a lista poderia continuar.
É por isto que acho que temos um "Jerusalém na Lusitânia".
Mas no próximo dia 27 de Junho o Gonçalo M. Tavares lá estará na Comunidade de Leitores da Almedina para nos elucidar.
Entretanto leiam e apreciem.
Já agora aproveitem os Jardins da Gulbenkian para ler, o ambiente é ideal.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

A Gaivota


Um moço que conheço, que percebe mesmo de coisas de literaturas e teatros, explicou-me uma vez que as peças de Tchekov estão todas mal amanhadas. Para começar, a acção é pouquíssima: o que de mais prometedor pode acontecer a uma personagem é matar-se, o que infelizmente nem sempre consegue. Depois, têm assim quilos daquelas falas monologais muito pouco subtis, só para o público ficar a saber dos passados das personagens e coisa e tal. Mas, pior que tudo, as conversas são muitas vezes desencontradas, quase não se percebendo quem é que está a falar com quem, e desaguando amiúde ora em silêncios ora em lado nenhum. Eu acrescentaria uma quarta da minha lavra: os nomes são esquisitíssimos. Por exemplo, diz um tal Yakov: “Konstantin Gavrilovich, ainda vamos ali abaixo, tomar um banho”. Konstantin Gavrilovich é fixe, não é? O melhor nome que poderíamos imaginar para alguém a quem queremos dizer que vamos ali abaixo tomar um banho. Não é? Sejamos sérios, pragmáticos, e amantes do PSI-20: houvera bom senso e Tchekov nunca rangeria nas tábuas de um palco – ou, se por azar rangesse, logo o público decente dormiria a sono solto, zzz.
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Porém, há um milagre esquerdo que faz com que Tchekov seja um dos dramaturgos mais representados do mundo. E, mais bizarro ainda, haja um público que o adore: um jovem professor primário que sonha com o surf que faz ao fim de semana; uma funcionária de lavandaria especializada em tratar de nódoas de esparguete à bolonhesa; um empregado de balcão duma loja de cobertores, lençóis e atoalhados ali na Baixa; uma adolescente desengraçada com muitas dúvidas, borbulhas, e um urso de peluche cor-de-rosa; um torneiro mecânico aposentado que gosta de dar milho aos pombos no Jardim da Estrela; uma arquitecta dedicada à recuperação de casas a cair de podre; ah, já me esquecia, e também um informático resmungão e mal-disposto, que sou eu; ah, e já me esquecia outra vez, mais uns bons milhares e milhares e milhares de pessoas vindas desses mundos todos longe e perto...
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Porquê? Não sei.
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O ano passado vi A Gaivota, de Tchekov, feita pelo Teatro da Cornucópia. A Gaivota, de Tchekov, feita pela Cornucópia tinha um grande defeito: saiu de cena antes que todos os milhares e milhares e milhares de corações unidos pelo fio tchekoviano tivessem tido oportunidade de ver a peça pelo menos umas cinco vezes. Porém, parece que este ano resolveram remediar um pouco a coisa e lá repuseram o espectáculo – embora com o defeito do costume: só irá estar em cena até 24 de Junho de 2007. Ora eu não quero sugerir a ninguém que vá ver A Gaivota, de Tchekov. Ninguém sugere a ninguém que se apaixone por alguém, a menos que seja tonto. Ainda por cima, por alguém um bocado mal amanhado e a fugir às regras. Todavia. Todavia... Todavia.
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A GAIVOTA de Anton Tchekov

Tradução Fiama Hasse Pais Brandão
Encenação Luis Miguel Cintra
Cenário e figurinos Cristina Reis
Desenho de luz Daniel Worm d’Assumpção
Distribuição Dinis Gomes, Duarte Guimarães, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, José Manuel Mendes, Márcia Breia, Ricardo Aibéo, Rita Durão, Rita Loureiro, Teresa Sobral e Tiago Matias.

Teatro do Bairro Alto, Lisboa

De 31 de Maio a 24 de Junho de 2007
De 3ª a sábado às 21:00, domingo às 16:00